Enquadramento do Buraco Roto - Parte 2 de 4

 

O resultado do contínuo trabalho de uma das mais velhas escultoras da pedra - A água

2 - Enquadramento Geomorfológico

2.1 - Evolução geomorfológica

A povoação de Reguengo do Fetal localiza-se na base do bordo NW do MCE e apresenta na sua envolvente vários locais de elevado valor paisagístico.

Nos principais maciços calcários portugueses, o processo cársico conduziu à elaboração de formas e paisagens sui generis, hoje consideradas de elevado valor patrimonial; é um processo longo e complexo em que o quaternário apenas representa uma porção muito reduzida de tempo evolutivo (CUNHA, L. 1999).

 

Apesar disso, as formas mais espetaculares, aquelas que detêm um inegável valor patrimonial e que frequentemente correspondem à imagem mais conhecida destes maciços têm a marca indelével dos processos fluviocársicos e cársicos desenvolvidos já no quaternário (ob. cit.).

 

Ao quaternário parece ter ficado reservado essencialmente o papel de exumação de paleoformas, algumas pré-cretácicas, outras terciárias, geradas consequentemente em condições paleogeográficas e paleo-ambientais bem diversas das atuais, ao mesmo tempo que se ia processando um retoque cársico nas superfícies calcárias entretanto postas a descoberto (CUNHA, L. e SOARES, A. F. 1987).

 

Nas imediações do Reguengo do Fetal são a exsurgência do Buraco Roto com a respetiva envolvente e o modelado das vertentes do Vale do Malhadouro, parte terminal do Vale da Quebrada, os locais com maior interesse paisagístico. É ainda relevante, pelo seu vigor e retoque geomorfológico todo o alinhamento da escarpa de falha, em especial no seu desenvolvimento para Sul da povoação principalmente a partir do Vale dos Ventos e prolongamento da escarpa mais para Sul. Cornijas calcárias coroam os cabeços que enquadram os vales suspensos pela escarpa de falha dando ao conjunto um aspeto invulgar. Com menor visibilidade paisagística mas também merecedoras de destaque geomorfológico pelo seu processo evolutivo são as amplas e muito recortadas depressões cársicas a Sul e sudeste da Serra da Andorinha.

 

Figura Nº 2.1 - Ampla e recortada depressão a Sul da serra da Andorinha. (Foto: Fernando Pires)

2.2 - Pequena abordagem paleoclimática da região

A importância dos paleoclimas na evolução superficial de algumas zonas marginais do bordo ocidental do MCE tem sido objeto de vários estudos e trabalhos focados fundamentalmente no período desde o início do quaternário. As características geomorfológicas herdadas de um paleoclima anterior observadas no Vale da Quebrada e para Sul deste são classificadas pela SPE (2006) de primordial importância visto que: "Não só a forma mas também aquele padrão de distribuição das depressões cársicas nesta área do Planalto de S. Mamede são assimiláveis ao que ocorre em regiões tropicais húmidas e podem por isso ser tidas como um testemunho (raro na Europa) da morfologia cársica herdada de um paleoclima deste tipo, provavelmente acentuada pela longa evolução criptocársica sob a cobertura detrítica do cretácico. É nesta área do Planalto de S. Mamede que o balanço entre o máximo de erosão da cobertura detrítica e o mínimo de erosão dos calcários subjacentes foi o ideal para revelar este tipo de morfologia".

 

A interpretação do processo evolutivo dos níveis do Planalto de S. Mamede, nomeadamente no nível do patim é incluído por MARTINS (1949) (pág. 116) nas superfícies de erosão terciárias e tem a seguinte descrição: "Ora tais características provam antes que se trata de um degrau de erosão, e, portanto, é legítimo aceitar que não estamos em presença de duas secções de uma mesma superfície planáltica deslocada por falha, mas perante dois níveis de erosão, separados por um outro intermédio - o do patim -. E se atendermos que o vale seco da Barreira de Água, insinuado no patim, estende para o interior deste o nível da plataforma de Fátima, impõe-se admitir que se trata efetivamente de níveis correspondentes a ciclos sucessivos. Já, porém, o facto de esse mesmo vale, por si e seus afluentes, e outros valeiros secos se insinuarem também - precariamente é certo - no nível mais alto - o das Pias -, significa apenas que ciclos determinados de uma nova rede hidrográfica avançaram a destroçar uma superfície anterior".

 

O mesmo autor indica (ob. cit.: 118), sobre o estudo dos depósitos correlativos da evolução das vertentes ao longo destas ou em diferentes compartimentos, que a sua proveniência resulta do transporte por águas correntes vindas do Maciço Antigo (texto integral já referido neste trabalho em 1.5.1 a)). E em nota de pé de página (p. 119) refere: "Por certo o agente do transporte foram cursos torrenciais, bem próprios de um país sujeito ao clima árido do Oligoceno, idade provável das aluviões; o regime torrencial dos rios denuncia-se na má calibragem do material. Acrescente-se que a área do Maciço devia então corresponder provavelmente a uma região baixa, talvez deltaica, na qual os rios, ou os braços destes divagavam.". Estes depósitos estiveram sujeitos a transformações ao longo do tempo geológico trabalhados pela erosão e/ou perturbações tectónicas locais. Ao longo desse tempo geológico houve mudanças climáticas importantes que foram responsáveis pela mobilização de diferentes materiais. O ritmo de congelação/degelo nas regiões periglaciares é o melhor exemplo da relação entre um processo fundamentalmente climático e os processos de crioclastia associados.

 

Para além das ações da crioclastia ou gelifração verificadas nos períodos frios do Quaternário, que são fenómenos relevantes na atuação da água gelada e seu degelo sobre a rocha calcária e que estão bem representadas nos depósitos localizados na Fórnea (junto à depressão de Alvados) ou no Polje de Minde (ver, por exemplo, RODRIGUES, 1991) consideramos também importante o volume das deposições de neve e gelo nas amplas zonas planálticas do Planalto de S. Mamede. O degelo sazonal constituiria uma importante fonte de água que iria atuar de forma diversificada sobre as superfícies pouco inclinadas da rocha calcária e respetivas coberturas detríticas. Seriam geralmente os topos dos cabeços os locais a ficarem mais rapidamente expostos. Ao longo do alargamento das zonas expostas as águas, do degelo e pluviais, que não se infiltrassem de imediato poderiam dar origem a diferentes modalidades de escorrência (difusa ou concentrada) que acabariam por afetar áreas relativamente deprimidas (sul da Serra da Andorinha) ou aos talvegues de vales cobertos por neve ou gelo mais espesso (a norte dessa Serra). A cobertura detrítica dificultaria a sua infiltração pelo que as acumulações de água acabariam, devido à estruturação do relevo, por alcançar os pontos mais baixos ao longo do alinhamento do topo da escarpa de Falha do Reguengo do Fetal por onde se escoariam constituindo, pontualmente, torrentes impetuosas.

 

Durante o Ultimo Máximo Glaciário (UMG) associado por Dias (2004), para Portugal, a cerca de 18 000 BP (BP - "antes do presente" tendo sido convencionado o ano de 1950 como o presente), a frente polar, na altura, localizava-se à latitude do Norte de Portugal (ver por exemplo: McIntyre, 1973). Com efeito a maioria dos autores concorda em atribuir ao UMG um mínimo da temperatura média global da ordem dos 4 a 5º mais baixo que o atual e um máximo de retenção de água sob a forma de gelo nas regiões circumpolares e nas regiões de montanha (FREITAS, 2009). Na faixa atlântica vigoraria um ambiente frio, com ventos fortes, neve e nebulosidade elevada, com estações chuvosas mais longas que as atuais, e períodos de maior precipitação na Primavera e Outono (Daveau, 1980, Dias, 2004: 159). " A erosão flúvio-glaciária, a fusão estival dos gelos e as pluviosidades primaveris conferiam aos rios caudais hídricos que provocavam o transporte de grandes cargas sólidas, em que a quantidade de materiais grosseiros era elevada " (Dias 1987 in 2004; 159).

 

Estas referências reportam-se aos rios em formações mais impermeáveis e brandas entre o rebordo ocidental do Planalto de S. Mamede e o mar. Nos calcários do Dogger a oriente da falha de Reguengo do Fetal seria o aumento da capacidade de dissolução dos calcários, pela lenta fusão estival, o aspeto mais relevante e paralelamente o transporte de pequenos clastos como carga de fundo em zonas de maior declive bem como dos materiais da cobertura siliciclástica de proveniência exterior ao maciço que seriam deslocados ao longo das suaves encostas e se acumulariam nas zonas de cota mais baixa. Sempre que os ocos no calcário permitissem a infiltração da água em profundidade o transporte, nesses locais, seria por gravidade. Numa fase mais evoluída e nas zonas planálticas com rocha nua aflorante, como na vertente Oeste do v.g.d. do Rebelo, a quantidade da infiltração das águas do degelo seria bastante próxima do total da neve e gelo depositados sobre essas superfícies (fraca evapotranspiração e sublimação).

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