O bordo ocidental do Planalto de S. Mamede localizado na freguesia de Reguengo do Fetal constitui um exemplo interessante mas bastante complexo das duas forças interrelacionadas que estruturam as formas do relevo: as forças endógenéticas responsáveis pela evolução morfoestrutural e as ações dos processos exogenéticos responsáveis pela forma ativa da formação do relevo identificáveis pela tipologia e significado morfoclimático dos depósitos já observados e de outros já estudados e descritos reportados a uma área envolvente mais vasta quer a norte, quer a sul desta zona. A componente litológica já foi descrita no enquadramento superficial. A evolução morfoestrutural será feita mais adiante.
Nas proximidades da povoação do Reguengo do Fetal são observáveis diferentes e interessantes tipos de depósitos resultantes de evoluções sub-aéreas distintas ao longo da vertente da escarpa de falha: em pequenos valeiros nela encaixados, em vales suspensos pela sua evolução tectónica (Vale dos Ventos) e na parte final do vale fluviocársico (Vale do Malhadouro).
Na vertente Norte do valeiro que desce entre o v.g. do Caramulo e o do Reguengo observa-se um terraço lateral à cota de 250 metros cuja composição é predominantemente feita por pequenos clastos angulosos. Estão aqui acumulados milhares de fragmentos estilhaçados e arrastados pela erosão mecânica (possivelmente gelifractos). Estes sedimentos de vertente com predominância da fração detrítica em forma de pequenas plaquetas (lascas) merece um estudo detalhado já que apesar da intensa e variada ação tectónica sofrida localmente e, também, a altitudes superiores, que potenciaram a crioclastia não é de excluir que resultem, pelo menos parcialmente, de uma intervenção humana. Na parte superior desta linha de água localiza-se uma pedreira que aparenta, pelo tipo de exploração, ter servido para a extração e preparação de pedra em tempos muito antigos.
Figura Nº 2.17 - Aspeto geral do depósito de clastos achatados e angulosos. À direita pormenor. (Fotos: Pedro Pinto)
Este depósito está localizado em posição não conforme com as vertentes atuais já que se encontra em posição ligeiramente suspensa do sopé das vertentes.
A criocastia é um processo de meteorização física da rocha causada pelas baixas temperaturas. Também aqui e à semelhança do ocorrido na Fórnea (depressão de Alvados) foi o arrefecimento em período de periglaciação que proporcionou as condições favoráveis à formação de crioclastos. Neste local, esse facto foi favorecido por uma importante e extensa família de fraturas paralelas muito próximas umas das outras.
Fazendo parte do talude à beira da estrada, junto ao início do caminho que sobe para a Pia da Ovelha observam-se depósitos constituídos por crioclastos angulosos e subangulosos com forte agregação (figura nº 2.18 A). A pequena distância para Este o aspeto do depósito já não é tão homogéneo e para além dos clastos de menores dimensões ocorrem outros de formas e tamanhos muito heterogéneos com alguns de grandes dimensões (figura nº 2.18 B). Aparentemente este último resultou de uma cimentação menos coesa ou talvez mais recente de depósitos e abatimentos em contexto subsuperficial.
Figura Nº 2.18 - Crioclastos: junto à beira da estrada (A) e na base da escarpa a nível intermédio (B). (Fotos: Raul Pedro)
A um nível mais elevado e um pouco a ocidente da Pia da Ovelha, na base da parede vertical que acompanha a vertente Norte da parte terminal do Vale do Malhadouro encontra-se uma aglomeração de crioclastos bem consolidados que aparentam integrar outros materiais para além dos clastos calcários.
Figura Nº 2.19 - Crioclastos consolidados resultante de depósitos acumulados em concavidade
junto à base da escarpa intermédia do Vale do Malhadouro. (Foto: Raul Pedro)
Em função do soerguimento do maciço e/ou do abaixamento do nível base parte dos depósitos superficiais descritos por MARTINS e também das coberturas cretácicas depositadas nesta parte do Planalto de S. Mamede podem ter sido remobilizadas encontrando-se atualmente apenas alguns retalhos cretácicos dispersos ocupando, em geral, zonas relativamente elevadas (400m). Neste contexto também é frequente observarem-se um pouco por todo o lado arenitos grosseiros com siliciclastos. MARTINS (1949) designa-os por siderólitos. As aluviões que atapetam o fundo dos vales e das zonas depressionadas poderão conter também uma boa quantidade destas litologias não cársicas.
Figura Nº 2.20 - Arenitos grosseiros com siliciclastos de pequenas dimensões observados na envolvente
do caminho pedestre que desce do Cabeço do Rebelo para a Pia da Ovelha. (Foto: Fernando Pires)
Nas proximidades da povoação do Reguengo do Fetal são observáveis diferentes e interessantes tipos de depósitos resultantes de evoluções sub-aéreas distintas ao longo das vertentes quer da escarpa de falha quer da parte final do vale fluviocársico (Vale do Malhadouro).
Sendo este o enquadramento paisagístico mais relevante nas imediações da povoação do Reguengo do Fetal, principalmente pelos aspetos morfoestruturais que, nesta zona, lhe deram dimensão e estrutura característica como já foi referido foram, no entanto, os processos fluviocársicos e cársicos que lhe retocaram e embelezaram o enquadramento cénico.
Figura Nº 2.21 - Parte terminal da vertente norte do Vale do Malhadouro
com a povoação do Reguengo do Fetal em 2º plano (Foto: Raul Pedro)
Em ambas as vertentes do Vale, a níveis mais altos, estão marcados evidentes sinais de erosão por circulação hídrica descendente segundo um declive suave. Há evidência de diferentes níveis com aparentes ressaltos descendentes relacionados com a sequência dos acidentes tectónicos e descontinuidades associadas. O vigor dos abruptos que estas vertentes apresentam, em especial na parte terminal do vale, indiciam colapsos relativamente importantes nas margens de um leito fluvial cada vez mais encaixado. A fragmentação das bancadas do calcário, muito fraturado pelas inúmeras descontinuidades verticais paralelas permitiu que a rocha se partisse em clastos relativamente pequenos que, na sua maioria, foram arrastados por uma corrente fluvial. Na base das vertentes e devido a forte ação antrópica muitos dos clastos foram escolhidos e deslocados pelo que em vários locais as suas dimensões apresentam padrão uniforme.
Foi por aqui que as drenagens ao longo da evolução do Vale da Quebrada (com altitude de 300m na zona média) venceram a escarpa de falha do Reguengo do Fetal. De notar que na base do Vale do Malhadouro a cota é de 190m. FERNANDES MARTINS (1949) descreve a evolução deste tipo de vales como se segue: «Ora, como os calcários do Maciço, e ainda mais particularmente os do Dogger, são permeáveis em grande - o que não oferece quaisquer dúvidas, a génese desses vales só é suficientemente explicada se admitirmos que durante um período de tempo, mais ou menos longo, a superfície da rocha esteve próxima do nível de base, já que à falta dessa condição necessária nunca poderia ter havido predomínio da erosão normal implícito no escavamento daquelas formas». O Vale da Quebrada acabou por se tornar um vale suspenso possivelmente devido à atividade da Falha de Reguengo do Fetal.
O destaque, na parte terminal do Vale do Malhadouro, é um descomunal bloco de rocha calcária (volume estimado de 1500m3) aqui observado que aparentemente colapsou da parte inferior da vertente Norte abaixo da estrada.
Figura N 2.22 - O grande bloco abatido na zona final do Vale do Malhadouro. (Foto: Raul Pedro)
Junto a ele e, para NNE, encontram-se outros blocos sendo, também, um deles de grandes dimensões mas um pouco menor (fig. nº 2.23 A). Na zona mais baixa da vertente Norte do Vale do Malhadouro encontram-se dispersos ao longo do pequeno declive bastantes blocos mais pequenos mas de dimensões métricas (fig. nº 2.23 B). Esta configuração indicia que a origem deste grande colapso se localiza abaixo da parte intermédia da vertente Norte deste vale. Estarão certamente associados a uma fase evolutiva mais recente. Não foram ainda observados com mais pormenor os eventuais depósitos da vertente Sul na área circundante. Na vertente Norte há indicações de uma importante e recente intervenção humana da qual se desconhecem as proporções.
Figura Nº 2.23 - Conjunto de blocos abatidos na zona final do Vale do Malhadouro. A - O grande bloco à esquerda do outro
de grandes dimensões. B - Blocos mais pequenos no suave declive junto à base da vertente (Fotos: Fernando Pires).
A recente desmatação desta zona do vale poderá permitir, no futuro, um melhor esclarecimento em relação à caracterização destes colapsos.
Figura N. 2. 24 - Conjunto de blocos abatidos nas vertentes da zona final do Vale do Malhadouro.
Na vertente Norte (lado direito da foto) observam-se mais alguns grandes blocos bem como os possíveis
locais da sua origem. Não foram referidos no texto. Na vertente Sul observam-se alguns indícios de blocos
abatidos a nível mais elevado. (Foto: Fernando Pires)
Foram identificados três locais de evidente rebaixamento do solo na zona mais aplanada do fundo do Vale do Malhadouro com diâmetros entre 1 e 2 metros que segundo informações da população foram abertos por emissão ascendente de fluxo hídrico subterrâneo aquando do ciclone de 2003. Este facto evidencia a possibilidade de uma eventual drenagem a maior profundidade por entre blocos.
Figura Nº 2.25 - Um dos pontos referidos como emissivos durante o ciclone de 2003. (Foto: Raul Pedro)
Para além destes aspetos de intensa e forte ação erosiva ao longo de um antigo leito fluvial é importante descrever os vários depósitos localizados em terraços ou zonas de vertente ao longo da zona intermédia da parte terminal das vertentes do Vale do Malhadouro, em sequência descendente (localização altimétrica) que se reportam a outros períodos da sua evolução. De momento e fundamentalmente devido ao denso coberto vegetal é impraticável fazer para a vertente Sul o mesmo tipo de observações das realizadas na vertente Norte.
Figura Nº 2.26 - Observação da erosão fluviocársica e do retoque cársico na base da escarpa que desce
ao longo da parte terminal da vertente Norte do Vale do Malhadouro. (Foto: Fernando Pires)
Na vertente Norte do Vale do Malhadouro à cota dos 280 metros possivelmente acima do eventual antigo leito fluvial pode observar-se um depósito de vertente, não consolidado nitidamente com predominância de clastos com dimensões bastante heterogéneas (crioclastos).
Figura Nº 2.27 - Depósitos na vertente Norte do Vale do Malhadouro e pormenor.
Escala dada pelos óculos de sol no círculo branco. (Fotos: Raul Pedro)
A uma altitude aproximadamente de 230 metros encontra-se um terraço lateral que contem um depósito completamente diferente. Aqui observa-se a predominância de argilas avermelhadas, em contacto com arenitos claros. Nas zonas inferiores aparecem disseminados alguns calhaus rolados (siliciclastos).
Figura Nº 2.28 - Parte intermédia da vertente norte do Vale do Malhadouro. (Foto: Fernando Pires)
A curta distância para Norte e já na base da escarpa de falha do Reguengo do Fetal, a altitude semelhante mas numa área marginal da influência fluviocarsica o depósito de vertente é muito diferente (figura nº 2.29). Essa diferença também é evidente em comparação com a figura nº 2.27 dado que aqui os clastos são um pouco maiores e a quantidade de argila neste depósito é maior devido à menor altitude e inclinação.
Figura Nº 2.29 - Abundantes clastos de dimensões e formas variadas disseminados em argilas.
(Foto Fernando Pires)
No prolongamento descendente do Cabeço do Rebelo para WNW e à cota de 222m já sobre afloramentos do Jurássico superior e do Cretácico podem observar-se muitos calhaus rolados, de variadíssimos tamanhos e tipos de rocha, disseminados nos arenitos em estreita concordância com a descrição de Fernandes Martins.
A figura nº 2.30 é bastante ilustrativa não sendo evidente qualquer tipo de estruturação deposicional. As litologias siliciclásticas aparentam resultar de um transporte aquoso rápido por carga de fundo.
Figura Nº 2.30 - Talude de berma de estrada. (Foto Raul Pedro)
Noutros locais, apenas a dezenas de metros de distância (sobre afloramento Kimeridgiano), observa-se alternância de gradientes dos depósitos. Cobrindo uma pequena parte do rebordo sul do pequeno retalho do cretácico observam-se também depósitos siliciclásticos cuja abundância vai diminuindo rapidamente para Oeste (posição mais elevada).
Figura Nº 2.31 - Pormenor dos despósitos com gradientes alternados (A) e zona mais a Oeste
com depositos siliciclásticos sobre o afloramente cretácico (B). (Fotos Fernando Pires)
Os calhaus rolados já são em menor número e menos evidentes nas imediações da zona de contacto dos arenitos do cretácico com as camadas calco margosas avermelhadas do Kimeridgiano já a uma cota ligeiramente inferior no prolongamento do relevo referido (figura nº 2.32).
Figura Nº 2.32 - Discordância angular das formações referidas. (Foto. Raul Pedro)
No entanto os siliciclastos de pequenas e médias dimensões (milimétricos a 10cm) são também evidentes e numerosos em locais mais a Este e ligeiramente mais profundos fazendo parte de arenitos mais consolidados de tendência conglomerática. Ocorrem, mas são raros, os clastos de calcário batoniano nestes depósitos mais consolidados.
Figura Nº 2.33 - Conglomerado de arenito consolidado com siliciclastos de quartzo de várias dimensões.
Em local próximo a mesma formação apresenta, para além dos siliciclastos um clasto de calcário batoniano
muito fraturado. (Fotos: Fernando Pires)