"Um Algar Improvável" - Parte 1 - Enquadramento superficial

"Um Algar Improvável"

 Por Raul Pedro

Era uma vez uma toca de "rato do campo"

 

1 - Enquadramento superficial

1.1 - Localização

O Algar Improvável localiza-se em pleno coração do Parque Natural das Serras de Aire e Candeeiros (PNSAC), na zona superior do limite sudeste do concelho de Porto de Mós. Os terrenos pertencem à Freguesia de São Bento e também se encontram num dos seus limites: a zona NE.

 

Fig. 1.1 - A: Zona alargada que se estende do topo da vertente meridional do Vale da Canada (o tracejado a preto é o limite
entre freguesias) até às zonas urbanas a Sul (Telhados Grandes e Curraleira). É a principal zona em análise.

 

Uma das melhores referências para a sua localização é estar relativamente próximo do conhecidíssimo Algar do Ladoeiro, uma das cavidades mais importantes do PNSAC, sendo simultaneamente uma das maiores bocas de cavidade no Maciço Calcário Estremenho (MCE). O contraste entre estas duas entradas não poderia ser mais expressivo. O Algar Improvável resultou da desobstrução de uma aparente toca de rato do campo onde se detetou a emanação de uma corrente de ar.

 

Fig. 1.2 - Aspeto inicial da entrada do Algar Improvável.

 

As prospeções e observações das particularidades do terreno numa ampla área em volta do Algar do Ladoeiro são incontáveis (incluindo perfil de georadar feito por CRISPIM em 2004). As referências históricas deste algar reportam a sua importância espeleológica desde as primeiras décadas do século XX. Ernest Fleury em 1925 publica a sua topografia em "Portugal Subterrâneo". Apesar de tudo isso são poucas as cavidades com alguma importância encontradas ao longo desta suave encosta, exposta a S, que desde a proximidade da linha de orientação E-W que separa as freguesias de Alvados/Alcaria da de São Bento (alinhamento do topo da vertente Sul do Vale da Canada) desce até à estrada que liga Telhados Grandes, Curraleira e Barreira da Junqueira.

1.2 - O relevo

Nas imediações do Algar Improvável encontramo-nos a uma cota ligeiramente acima dos 500 metros e o horizonte abre-se à nossa frente (Sul) abrangendo uma ampla área do Planalto de Santo António. A nossos pés, o lajedo fraturado desta zona dispõe-se em bancadas ligeiramente inclinadas para Sul como se fossem os ressaltos dos degraus da "bancada central" de um imenso "anfiteatro". Até a orientação e o comprimento dos pequenos valeiros que se encaixaram ao longo das falhas (NNW-SSE) reforçam a semelhança dessa imagem por se assemelharem a "corredores" desde as zonas humanizadas (cotas a rondar os 400 metros) até às bancadas mais elevadas.

 

Um pouco a Sul da povoação de Santo António há locais com cotas ligeiramente acima dos 300 metros. A parte oriental desse "anfiteatro" seria o reverso da escarpa da Costa de Minde no seu alinhamento mais elevado: Pedra do Altar (584 m), Penedo Padrão (551 m) e Barreira (515 m). A ocidente seria o alinhamento da Encosta Vale de Carneiros, onde na Junqueira se atingem os 550 metros, a completar essa disposição. Esta comparação, aparentemente exótica integra-se, no entanto, numa perspetiva algo diferente da interpretação que iremos fazer da evolução do relevo local.

 

Encontramo-nos num ponto central, bastante elevado de onde é possível observar algumas das mais vigorosas linhas da paisagem intrinsecamente ligadas à sua arquitetura estrutural. A Este, o alinhamento descrito do topo da Costa de Minde. Na linha do horizonte e para NNW estende-se a impressionante Costa de Alvados predominantemente acima dos 550 metros e atingindo os 589 na Atalaia. No prolongamento do seu extremo Sul, para cá do Vale do Patelo, liga-se à Costa da Feiteira iniciando-se aí a vertente meridional da Ribeira da Canada.

 

Fig. 1.3 - A curva acentuada na vertente Sul do vale da Canada

 

Observa-se a partir do Vale da Erva e Vale do Patelo uma importante mudança de direção (aproximadamente 1300) para ESE (fig. 1.3). A Costa da Feiteira torna-se também notável, do ponto de vista paisagístico, por dar aparente continuidade ao abrupto da Costa de Alvados mas constituindo agora a vertente meridional do Vale da Canada. Ao longo do alinhamento do topo desta vertente as cotas mantêm-se sempre próximo dos 500 metros de altitude. Na zona dos Vales da Lousã e da Espinheira a sua uniformidade é marcada pelos pequenos recuos erosivos da vertente coincidentes com as zonas onde as descontinuidades locais (mais importantes) a intersetam. Apresenta uma descida suave e abaulada até meia encosta sendo a parte final mais declivosa.

 

Do lado norte desenvolve-se a vertente setentrional do Vale da Canada, menos expressiva em dimensão mas mais abrupta onde o papel preponderante é assumido pelo alinhamento de pequenas escarpas de calcário. A notória assimetria, em perfil transversal, das vertentes do Vale da Canada, na sua parte média e final, deve-se às diferenças litológicas de cada uma delas (zonas mais elevadas): calcários margosos do Aaeleniano na vertente Sul e calcários do Batoniano na vertente Norte. Refira-se ainda o importante controlo tectónico da falha do Vale da Canada (vertente Norte).

Fig. 1.4 - Modelo digital de terreno do MCE, sistema de coordenadas retangulares Hayford-Gauss, Datum 73

Um pouco para lá do topo da vertente setentrional alinham-se, em segundo plano, alguns troços de uma outra escarpa de falha cujos afloramentos sobressaem, sequencialmente de SW para NE, por entre a densa vegetação. Nas proximidades da cabeceira do Vale da Canada (vale de origem flúvio-cársica) são ainda relevantes as Covas da Canada.


1.3 - Evolução Geomorfológica

A primeira circunstância a chamar-nos a atenção na zona envolvente destes dois importantes algares é a uniformidade dos amplos lajedos das bancadas extensas e nuas, suavemente inclinadas para Sul. A segunda é a impressionante dissecação observada em algumas áreas e a organização praticamente paralela das várias famílias de descontinuidades superficiais com múltiplas zonas de interseção. A terceira e última, reportada a uma área mais alargada, é motivada pelas diferenças da estratonomia que permitiram em alguns locais um maior desmantelamento do modelado superficial (rebordo das camadas), em geral nas zonas onde as bancadas que aí afloram são menos espessas e ou mais fraturadas.

 

Fig. 1.5 - Amplos lajedos (aplanado na zona mais elevada e inclinando posteriormente para sul). Aspeto geral de um local
com alteração superficial da rocha em zona muito fraturada. A orientação das descontinuidades superficiais,
predominantemente paralelas ao mergulho das camadas potencia a evolução deste processo. (Foto: Fernando Pires).

 

É particularmente evidente a influência da tectónica na evolução das fornas superficiais nesta área do Planalto de Santo António.

1.3.1 - Formas superficiais

 

A acentuada desnudação do terreno, a ligeira inclinação das camadas e a diversidade das orientações das disjunções foram os fatores que conjugados com os trabalhos da água (pluviosidade e degelo da neve e do gelo de acumulações pontuais devidas a períodos mais frios no quaternário) criaram aqui um modelado superficial muito diversificado. A atuação dessas águas teve alternâncias (períodos com climas mais frios e outros mais quentes) por vezes com importantes dilatações temporais (RODRIGUES, 1991).

 

Na morfologia superficial o aspeto mais importante e característico é o lapiás de mesa que se estende ao longo das bancadas tabulares bem expostas e um pouco mais espessas (fig. 1.6 zona A). Em alguns locais as bancadas que afloram, menos espessas, foram mais desmanteladas pela desagregação em blocos, por vezes mesmo pelos seus deslocamentos (em geral no rebordo das bancadas - fig. 1.6 zona B). Nas bancadas com zonas mais conservadas observa-se um lapiás de mesa que poderá ter estado parcialmente coberto (fig. 1.6 zona C).

Fig. 1.6 - Alguns aspetos da morfologia superficial respeitantes aos campos de lapiás.

A - Lapiás de mesa; B- Rebordo das bancadas desmantelado; C - Lapiás de mesa que esteve coberto.

São ainda característicos os vários corredores de acumulações das argilas de descalcificação, em geral estreitos em largura e espessura de solo, mas bastante alongados dispondo-se junto à base do rebordo de algumas bancadas (mais comuns no topo e ao longo do rebordo norte da zona mais elevada da vertente). Estão relacionados com o maior aplanamento do relevo nessas zonas.

 

Na figura Nº 1.6 sintetizou-se um conjunto de diversas formas superficiais que merecem alguma observação de pormenor. Nas figuras que se seguem elas são ilustradas de forma mais individualizada e complementam a breve descrição que foi feita anteriormente.

   

Fig. 1.7 - Extenso lajedo de lapiás de mesa (figura da esquerda) e transição, na sua ponta final
(metade direita da segunda figura) para zona mais afetada pela erosão resultante das escorrências.

   

Fig. 1.8 - Importante erosão/dissolução superficial por escorrências segundo o mergulho das camadas.
Ação de desmantelamento do rebordo de camadas menos espessas (em conjugação com a fracturação local). 

    

Fig. 1.9 - Coalescência entre duas diáclases por reativação cisalhante (figura da esquerda) e o efeito
da interseção de uma das fraturas de desligamento (N-S) por fraturas paralelas (figura da direita).

 

  

Fig. 1.9 - Fragmentação superficial com predominância da ação erosiva e de dissolução em relação à de
origem tectónica (figura da esquerda). Corredores de acumulação de argilas de descalcificação (figura da direita).
Ocorrem, também, em vários locais ao longo da suave encosta que se prolonga para Sul.

Considerando-se uma área mais vasta para Sul, desde o topo da vertente meridional do Vale da Canada, entre a estrada alcatroada (Santo António/Alvados) e o Vale da Lousã prolongando-se em ligeiro declive até às zonas urbanizadas observa-se que este modelado superficial é compartimentado pelo alinhamento quase paralelo de vários pequenos valeiros secos em U encaixados nas fraturas e por vezes pontualmente desorganizados pela carsificação ao longo do seu traçado.

 

Nesta área, as propriedades agrícolas encontram-se muito organizadas e foram, de um modo geral, sujeitas a importantes alterações antrópicas que modificaram o modelado original. Deste modo, certos corredores de acumulação de terra rossa ganharam maiores dimensões, embora mantendo uma configuração semelhante aos naturais. Em alguns desses pequenos valeiros secos essa ação antrópica deu maior expressão aos chousos dando por isso uma maior aparência de desorganização da carsificação e nos valeiros mais largos, os fundos mais aplanados, em suave declive, foram trabalhados em longos socalcos e acompanham uma boa parte do seu traçado final (zonas com cotas inferiores).

 

O mais expressivo, e também o mais profundo, é o que se desenvolve entre o Vale da Canada e a zona oriental da povoação de Telhados Grandes (influência de duas falhas paralelas ao longo da base das suas pequenas vertentes). É o único que atravessa, por um ligeiro entalhe, o topo da vertente do Vale da Canada. O amanho continuado da terra dá-lhe também um maior destaque visual. A formação deste entalhe parece estar relacionada com o mesmo processo de evolução nesta zona mais elevada. As Covas da Canada (muito próximas) poderão resultar de processos semelhantes.

Fig. 1.10 - Envolvente do Algar Improvável com destaque para o vale mais encaixado ao longo de fraturas NNW/SSE.

 

As Covas da Canada na cabeceira do vale aparentam alguma descaracterização de antigas dolinas pelo seu alinhamento e aparente captura pelo perfil superior da linha de água. A dolina mais característica localiza-se muito próximo da estrada alcatroada (lado Oeste). É uma dolina assimétrica de motivação estrutural com uma área aplanada central elíptica a retangular com orientação NW-SE e com dimensões de aproximadamente 35 por 25 metros (fig. Nº 1.11).

 

A suave área declivosa na maioria da sua envolvente é no entanto muito mais extensa em quase todo o perímetro e com mais de 10 metros de desnível. No entanto, para WNW esta envolvente está muito reduzida limitando-se a um curto rebordo ligeiramente mais elevado que lhe dá uma aparência de localização quase suspensa na cabeceira do Vale da Canada.

Fig. 1.11 - A dolina mais conservada das Covas da Canada. (Foto: Fernando Pires)


No alinhamento dessa direção e a uma cota inferior (-10m), num dos ressaltos superiores do perfil da ribeira junto à cabeceira do Vale, observa-se um recanto com o fundo elíptico e ligeiramente inclinado para jusante.

 

Nessa zona do leito da ribeira a disposição das camadas (inclinação inversa à da escorrência na linha de água) pode favorecer, em função do clima atual, a sua lenta evolução para uma forma de dolina. A configuração deste local e o seu alinhamento com as Covas da Canada sugere a possibilidade de resultar da evolução (erosão e dissolução) mais rápida do rebordo Oeste de uma antiga dolina num período de clima mais frio e ou mais húmido.

 

Fig. 1.12 - Configuração da cabeceira do Vale da Ribeira da Canada. Alguns aspetos sugerem ter sido uma
antiga dolina praticamente capturada pelo leito da ribeira numa fase de clima mais frio. (Fotos: Fernando Pires)

Esta interpretação é consubstanciada pela evolução aparentemente semelhante da envolvente que a separa da dolina Oeste da Cova da Canada descrita anteriormente.

 

Apesar de estar localizada numa zona marginal deste trabalho a outra Cova da Canada, a Este da estrada alcatroada, merece também uma pequena referência pois apresenta características evolutivas semelhantes embora com um desenvolvimento no sentido inverso desta (ESE). A evolução foi mais rápida ou mais intensa (rebordo conservado mais expressivo), pelo que a primitiva dolina já se encontra aberta no lado Este.

Figura 1.13 - A Cova Oeste apresenta um rebordo mais elevado e de maior inclinação com exceção
da parte sudeste. Nesta zona não apresenta rebordo e o fundo prolonga-se nessa direção
passando a constituir o talvegue de um pequeno vale progressivamente mais fundo na direção ESE .

Próximo da entrada do Algar Improvável parece terem existido algumas pequenas dolinas (2 ou 3) cujos fundos aplanados foram sujeitos a alterações antrópicas. Hoje um amplo chouso (cerca de 50 por 32m) circunda essas formas primitivas. Aparentemente foram ligadas e a área cultivável prolongada para sul com o suporte final de uma pequena parede artificial desse lado. Observa-se um ligeiro afundamento da terra rossa na área NE deste chouso. A maior sala do Algar Improvável (Arena -147 a -155m) bem como os dois maiores poços verticais (32 e 27 m) desenvolvem-se em profundidade sob esta parte do terreno agrícola.

Fig. 1.14 - O amplo chouso nas imediações do Algar Improvável (30 metros a sul).

(Foto: Fernando Pires).

Numa zona menos declivosa da vertente meridional do Vale da Canada (terço superior para N), e num local atravessado por uma das falhas de desligamento, foi-se desenvolvendo um pequeno entalhe no plano da vertente criando uma ligeira concavidade. A pequena inclinação dos estratos para Sul potenciaram a formação de uma pequena aplanação primitiva que foi alargada e rodeada por um chouso. A intervenção humana alterou este local para utilização agrícola com o aporte de mais terra rossa e uma ligeira elevação do bordo mais abatido. A sua forma circular dá-lhe um aspeto de dolina mas camuflou o seu aspeto primitivo.

Fig. 1.15 - Forma circular de terra rossa com chão ligeiramente inclinado em plena vertente. É a mais
característica de entre as várias que se podem observar ao longo desta vertente. (Foto: Fernando Pires)

No topo da Costa da Feteira pode destacar-se uma grande dolina em concha evoluída a partir de uma forma assimétrica de motivação estrutural. Observa-se intervenção humana bem como um afundamento progressivo no seu bordo Oeste com inclinação do fundo da dolina para esse lado.

Fig. 1.16 - Dolina circular com fundo de terra rossa inclinado para W.
As camadas têm uma ligeira inclinação para SW. (Foto: Fernando Pires).

Na zona superior do Vale da Canada e próximo da sua cabeceira as vertentes são menos abruptas e apresentam ao longo do seu desenvolvimento patamares mais ou menos alongados e com declives suaves. São quase sempre limitados por pequenas escarpas rochosas alongadas. Na vertente sul os patamares têm menor expressão, mas na vertente norte a dimensão já é significativa. A falha da Canada, paralela à linha de água e no topo da vertente norte poderá ter sido determinante nesta evolução. No entanto, o principal fator a influenciar e potenciar esta evolução da vertente norte é a sua litologia: Calcários de Chão das Pias. Na vertente sul e zona da linha de água afloram as Margas e Calcários margosos do Zambujal.

Fig. 1.17 - Aspeto geral da zona próxima da cabeceira do Vale da Canada. Na vertente sul poderá ter existido
uma possível antiga dolina capturada pela cabeceira do vale (A), um patamar inclinado e alongado na envolvente
do palheiro e delimitado pelas pequenas escarpas (B) e um patamar inferior (mais expressivo) limitado por ravinamento
com marcada inclinação já próximo da linha de água (C).

 

Fig. 1.18 - Na vertente norte, já próximo da cabeceira do vale observa-se uma sucessão de zonas
com menor inclinação ao longo da vertente e um amplo patamar, mais abaixo, bastante largo e alongado.

 

Esta descrição mais alargada das formas superficiais enquadra-se na nossa interpretação da evolução paleoclimática da zona sendo uma das suas bases de apoio.

BIBLIOGRAFIA

CRISPIM J. A. (2012) - Referência em publicação da SPE: O Algar do Ladoeiro, a norte de Telhados Grandes.

RODRIGUES M. L. E. (1991) - Depósitos e evolução quaternária das vertentes das depressões de Minde e de Alvados. Finisterra, XXVI, 51, Lisboa.

 

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