VALORES NATURAIS DAS SERRAS DA ADIÇA E FICALHO
Resumo
As Serras da Adiça e Ficalho, localizadas na margem esquerda do Rio Guadiana, nos Concelhos de Serpa e Moura, constituem um relevo de rochas carbonatadas no seio de formações xistosas. Apresentam, portanto, características geomorfológicas com grande importância no ecossistema local e invulgares no panorama dos maciços cársicos portugueses.
Com vista ao melhor conhecimento da zona, quer do ponto de vista ecológico, quer do ponto de vista do potencial de desenvolvimento, a Comissão de Coordenação Regional do Alentejo encomendou ao Centro de Estudos e Actividades Especiais da Liga para a Protecção da Natureza (CEAE-LPN) um levantamento dos valores naturais da área. Os trabalhos de campo decorreram de 1988 a 1991, tendo sido recentemente concluído o relatório final.
Em termos de investigação original, o estudo incidiu nos seguintes aspectos: análise da paisagem, levantamento florístico e faunístico, levantamento espeleológico e identificação de problemas ambientais. Para além disso, foi feita uma revisão da informação já existente em matéria de geologia, fisiografia e meio sócio-económico.
No tocante à espeleologia, foram identificadas doze cavidades, na sua maioria exploradas integralmente pela primeira vez pelas equipas do CEAE. A cavidade mais profunda atinge os 61m; a mais extensa apresenta um desenvolvimento em planta de 56x90m.
Ao longo dos estudos desenvolvidos, foram identificadas particularidades interessantes em diversas cavidades, em matéria de bioespelologia, climatologia e geologia, que merecem um estudo mais aprofundado.
De uma forma geral, o trabalho realizado demonstrou o interesse da zona em matéria de conservação da natureza, e a necessidade de optar por formas de desenvolvimento local não agressivas para o ambiente.
1. Introdução
O levantamento do património natural das Serras da Adiça e Ficalho foi solicitado pela Comissão de Coordenação Regional do Alentejo ao CEAE-LPN em finais de 1988. Os trabalhos de campo foram concluídos em Setembro de 1991 e a organização de dados em Dezembro do mesmo ano, embora a edição final do relatório demorasse mais alguns meses.
O estudo do património natural da Adiça e Ficalho destina-se a melhorar a qualidade do ambiente e condições de desenvolvimento desta região. É, pois, um trabalho realizado numa perspectiva de futuro.
O estudo incidiu fundamentalmente nas seguintes matérias: classificação da paisagem e usos do território; levantamento da flora e fauna; relações entre as diferentes componentes do ecossistema; complemento dos levantamentos geológicos e hidrológicos previamente existentes com reconhecimentos de campo, beneficiando em particular da penetração nas grutas; levantamento, topografia e estudo sumário das grutas existentes; identificação das disfunções ambientais e potencial existente, apontando-se caminhos para um melhor aproveitamento dos recursos naturais locais.
2. Caracterização geral da área
LOCALIZAÇÃO
A área estudada encontra-se situada na região vulgarmente conhecida por "margem esquerda do Guadiana", longitude 1°45' a 1°53' W (meridiano de Lisboa) e latitude 37°55' a 38°03' N.
Tem a forma aproximada de um trapézio e uma superfície de cerca de 90 km2 (9000 ha).
Abrange grande parte das freguesias de Vila Verde de Ficalho (Concelho de Serpa) e Sobral da Adiça (Concelho de Moura).
GEOMORFOLOGIA
As Serras da Adiça e Ficalho situam-se na grande mancha de terrenos metamórficos que se estende da fronteira (Vila Verde de Ficalho) até Montemor-o-Novo.
Os relevos estão distribuídos em três alinhamentos principais: a oeste, a sequência Malpique (381 m), Savos (356 m) e Calvos (319 m); ao centro, o alinhamento principal, Álamo (425 m), Adiça (476 m) e Ficalho (518 m); a leste, a crista da Preguiça (326 m). As elevações mais importantes são formadas por calcários cristalinos, muito rijos e dolomitizados, apresentando-se muitas vezes cortados por inúmeros veios de quartzo, estabelecendo uma malha coesa e mais resistente que os calcários pré-existentes. Afloram também quartzitos, em quantidades inferiores aos mármores, e observam-se intercalações de rochas brandas, mesmo nas vertentes mais abruptas.
Na parte sudoeste não se observam grandes elevações, porque os calcários estão muito misturados com o xisto, sendo mais facilmente erodíveis, apresentando apenas um relevo movido. As Serras da Adiça e Ficalho têm a sua origem ligada a uma elevação tectónica antiga que, por erosão diferencial, conservou o bloco mais resistente.
A sequência estratigráfica encontra-se estabelecida com a seguinte sucessão de baixo para cima: Série Negra; Série Detrítica; Calcoxistos; Calcários e Dolomites; Rochas Verdes.
CLIMA
O clima é caracterizado por fraca pluviosidade (400 a 500 mm/ano), concentrada nos meses de Inverno, donde resulta um forte défice hídrico durante o Verão. As temperaturas são muito elevadas durante o Verão (temperatura máxima em Julho 45°C) e amenas durante o Inverno (temperatura máxima em Janeiro 26°C), embora com fortes amplitudes térmicas. O clima pode assim ser classificado como mediterrânico de feição continental.
Nos alinhamentos de relevo o clima é amenizado, com precipitações superiores e temperaturas mais baixas. As encostas viradas a norte apresentam maior humidade,originando formações vegetais ligeiramente diferentes.
HIDROLOGIA E GEO-HIDROLOGIA
Devido ao substrato geológico e ao clima, todos os cursos de água da zona são de regime temporário e torrencial, apresentando cheias após grandes chuvadas e secando quase completamente no Verão. Algumas pequenas barragens permitiram a criação de planos de água permanentes, sendo o mais importante o do Monte da Ferradura.
A hidrogeologia regional é controlada pela presença de aquíferos cársicos, que acumulam milhares de metros cúbicos de água. A circulação subterrânea é fortemente condicionada pelas estruturas anticlinais que se desenvolvem entre as falhas da Vidigueira e de Ficalho.
Deste modo, o escoamento subterrâneo dá-se sobretudo no sentido de SE para NW. Oarquífero cársico de Moura-Ficalho constitui um reservatório subterrâneo com 17 hm3 de água anualmente renovados, mais uma quantidade desconhecida de água de circulação muito profunda e lenta, com várias particularidades hidroquímicas e termais.
Dadas as características do aquífero, há que ter cuidado face a agentes poluidores, uma vez que, nas zonas de recarga, sem cobertura de matriz argilosa, a infiltração das águas superficiais é directa, podendo acarretar uma contaminação imediata. Trata-se, portanto, de um aquífero muito vulnerável, e somente o facto de a cidade de Moura se encontrar numa zona essencialmente de descarga explica que não se tenham manifestado, com maior intensidade, situações de contaminação.
MEIO SÓCIO-ECONÓMICO
Nesta área a actividade económica principal é a agricultura, complementada com a pecuária e silvicultura. As culturas dominantes são o olival e as searas, seguido em importância pelo montado com pastagem. A indústria transformadora tem reduzida expressão. A indústria extractiva assume maior importância, nomeadamente a exploração de calcários cristalinos.
A evolução populacional recente caracteriza-se por um decréscimo acentuado da população nas freguesias rurais dos Concelhos de Serpa e Moura, atingindo 20% em Vila Verde de Ficalho e 30% no Sobral da Adiça entre 1970 e 1981. A população é relativamente envelhecida, existindo forte emigração para os centros urbanos próximos (Serpa, Moura, Beja, Évora), bem como para a área metropolitana de Lisboa. Em Ficalho, esta tendência de quebra populacional poderá ser invertida pela existência de uma rodovia internacional. Pelo contrário, o Sobral da Adiça não beneficia desta localização, não sendo previsível a inversão da tendência actual.
3. Paisagem
Os aspectos mais marcantes da paisagem da área estudada são, um de carácter cultural — o padrão de uso do solo e o forte peso do olival — e outro de carácter natural — a energia dos relevos mais acentuados — que, quando conjugados, formam um conjunto muito característico.
O forte carácter dos relevos é enfatizado pela sua cobertura com uma pauta ritmada, constante e regular, pela presença de uma espécie arbórea utilizada numa única forma de povoamento — o olival. É sem dúvida o olival, presente em cerca de metade da área, na planície e nas serras, o grande unificador da paisagem, tanto pelo seu valor próprio, como no constraste que impõe em relação à seara e aos montados. Estas duas utilizações do solo, seara e montados, a dualidade básica da paisagem alentejana, mantêm aqui a sua forte personalidade cultural e valor estético que lhe granjearam o estatuto de "ex-libris" da maior parte do Sul do País.
Em toda esta paisagem modelada pelo Homem desde há séculos, os dois gradientes de valor oposto em relação à sua humanização estão presentes nos matos (embora com expressão reduzida no conjunto da área) e nas zonas sociais, marcadas pelos "montes" e pelos aglomerados urbanos marginais: Vila Verde de Ficalho e Sobral da Adiça.
As principais unidades de paisagem são assim:
4. Flora e vegetação
Foram identificadas ao todo duzentas e cinquenta espécies vegetais distribuídas por setenta e três famílias. Das espécies identificadas, quinze não estão referenciadas para o sudeste alentejano, doze têm um elevado interesse botânico, incluindo nove orquideáceas (Orchis italica, Orchis chanpagneuxii, Orchis collina, Ophrys speculum ssp. lusitanica, Ophrys scolopax ssp. scolopax, Ophrys tenthredinifera, Epipactis hellebourine, Serapias vomeraciae, Aceras antropophora, Allium massaessylum, Euphorbia medicaginea e Gagea sp.) e nove são endémicas (duas europeias — Cistus populifolus e Salvia sclareoides — quatro ibéricas — Lavandula luisieri, Lavandula pedunculata, Paeonia broteroi e Leuzea rhaponticaides — e três portuguesas — Centauria vicentina, Prunus spinosa ssp institoides e Ophris speculum ssp lusitanica).
Ecologicamente, as espécies agrupam-se em tipos que reflectem os lugares ecológicos que ocupam. Desta forma definem-se dois grupos de tipos ecológicos:
Os levantamentos florísticos mais detalhados tiveram lugar nos matos e matas, distribuídos por Belmeque, Malpique, Álamo, Adiça e Ficalho. Pode afirmar-se que, geralmente, a diversidade aumenta para o interior dos matos, sendo dominados na periferia pelas cistácias e no interior por plantas de maior porte, como o carrasco (Quercus coccifera). No entanto, a distribuição em mosaico é por demais evidente, já que de levantamento para levantamento a composição florística muda, mais ou menos acentuadamente.
Ficalho apresenta a maior diversidade e o maior número de espécies com valor significativo, a que corresponderá um estádio mais complexo na organização florística; o coberto vegetal aproxima-se do seu óptimo e, consequentemente, de um hipotético equilíbrio (clímax).
No conjunto, trata-se de um complexo intricado de comunidades florísticas, em estados dinâmicos distintos. Os matos constituem verdadeiras ilhas no meio das searas, do montado de azinho e do olival, onde todos estes elementos contribuem para o estabelecimento de uma comunidade animal muito rica.
Em termos fitossociológicos, todas as formações dos matos e matas são enquadráveis na Aliança Ulici argentei - Cistion ladaniferi, incluindo por vezes elementos atribuíveis à série degradativa associada ao clímax do sobreiral (Sanguisorbo agrimonioides - Quercetum suberis). Em termos de associações, de entre as várias identificadas, a mais interessante é a Viburno tini - Querceto cocciferae, localizada nos núcleos de mata da Serra de Ficalho, que consiste numa importante comunidade florística endémica portuguesa e já muito rara no País.
5. Fauna
As Serras de Adiça e Ficalho apresentam uma localização estratégica em termos faunísticos.
São simultaneamente uma extensão da fauna da Serra Morena e um reduto da fauna da planície alentejana.
A situação geográfica, o substrato rochoso peculiar, as condições climáticas, o rico coberto vegetal e a estrutura paisagística em mosaico, diversificada e rica em ecotones, conferem às comunidades animais aí existentes um elevado número de nichos ecológicos (por exemplo, a maioria dos carnívoros abriga-se nos matos e alimenta-se na sua periferia ou fora deles). Daí a área estudada apresentar uma riqueza faunística considerável no contexto de Portugal.
Das 58 espécies de mamíferos referenciadas para Portugal, identificaram-se 29 na área estudada.
Os mamíferos de pequeno e médio porte (lagomorfos, carnívoros e artiodáctilos) foram estudados sobretudo por observação de vestígios indicativos e inquérito aos habitantes locais, embora para quase todos tenham sido conseguidas também observações directas.
Inventariaram-se 12 espécies: coelho, lebre, raposa, doninha, fuinha, lontra, texugo, sacarabo, gineta, gato bravo, javali e ainda, possivelmente, o lince ibérico (quanto ao lince, não foi possível confirmar a sua presença regular, sabendo-se apenas que foi recentemente morto um exemplar na área). Merecem especial referência, pela sua relativa raridade, a doninha, a lontra e o lince, embora todos os outros à excepção da raposa e javali apresentem especial interesse conservacionista.
Os micromamíferos (insectívoros e roedores) foram estudados através de armadilhagem, observação directa, inquérito junto das populações locais, identificação de esqueletos e observação de vestígios indicativos. Identificaram-se 10 espécies — ouriço cacheiro, diversas espécies de ratos e ratazanas, toupeira e musaranho. Nenhuma destas espécies é particularmente rara (algumas espécies, como as ratazanas, podem mesmo considerar-se pragas). Em conjunto, no entanto, tem-se uma comunidade razoavelmente rica e importante no conjunto do ecossistema, nomeadamente como base alimentar de carnívoros e rapinas nocturnas.
Os morcegos (quirópteros) foram estudados essencialmente com recurso à captura nas grutas existentes na área estudada, utilizadas como abrigo por estes animais, tendo sido identificadas 4 espécies. Uma das grutas visitadas, o Algar do Guano, terá tido recentemente uma das mais importantes colónias de morcegos do País. A entrada desta gruta foi obstruída por habitantes locais, o que terá ocasionado perturbações graves à colónia e redução das populações presentes na zona. A desobstrução da cavidade, efectuada pelas equipas do CEAE, permitirá eventualmente a sua reutilização pelos morcegos.
Em termos avifaunísticos, a área demonstra uma riqueza considerável: 114 espécies recenseadas. Saliente-se a ocorrência de algumas espécies que merecem uma atenção especial, quer pela sua raridade a nível nacional ou internacional, quer pelo facto de as populações se encontrarem em regressão: águia-cobreira, águia calçada, peneireiro-cinzento, milhafre-real, tartaranhão-caçador, sisão, alcaravão, cegonha-negra, águia-real, grifo, abetarda e grou.
A principal perturbação para a avifauna das Serras da Adiça e Ficalho é a caça. O número de caçadores na região é muito elevado, e a ausência de zonas inacessíveis onde as aves se possam refugiar acentua o impacto da caça. O abate regular de espécies protegidas por lei revela-se particularmente negativo para a avifauna de uma forma geral. Alterações das práticas agrícolas tradicionais nas estepes cerealíferas podem revelar-se profundamente negativas para um conjunto de espécies, de grande valor conservacionista, que frequentam este biótopo.
De entre as 20 espécies de anfíbios e répteis identificadas, uma — rã castanha (Rana iberica) — não parece ter sido antes referida para esta zona. Todas as espécies observadas constam na Convenção de Berna sobre a preservação da vida selvagem e habitats naturais na Europa.
Quanto às espécies piscícolas, o Alto Guadiana e os seus afluentes não apresentam a riqueza ictiológica das zonas mais próximas da foz. Das zonas observadas, o Rio Chança é o local mais importante, quer pela variedade de espécies (6 observadas), quer pela quantidade e dimensões dos indivíduos. É o único local onde se observaram pescarias esporádicas.
6. Espeleologia
INVENTÁRIO ESPELEOLÓGICO
O interesse pela área estudada, do ponto de vista espeleológico, foi despoletado pela descoberta recente de cavidades profundas inexploradas. Dada a proximidade das Grutas de Aracena, em Espanha, numa região com características geológicas similares, punha-se a hipótese de existir também na área estudada alguma cavidade com importância semelhante.
A região foi sistematicamente estudada recorrendo às técnicas espeleológicas correntes, tendo sido identificadas 12 cavidades cársicas (grutas). Estas cavidades podem ser classificadas simplificadamente, de acordo com a sua origem e parâmetros espeleométricos:
No seu conjunto, estas cavidades fornecem valiosas informações sobre a geomorfologia da zona e sobre a fauna cavernícola, em particular no que toca aos morcegos.
Individualmente, a cavidade com maior interesse é o sistema Algar do Guano - Cova da Adiça, que apresenta características morfológicas e climáticas invulgares, e contém um dos maiores depósitos de guano em Portugal.
No quadro 1 apresenta-se um inventário espeleológico sumário da área.
Quadro 1 — Inventário espeleológico da área estudada
CÓD. E NOME DA CAVIDADE | PROFUNDIDADE (m) | DESENVOLV. PLANTA (mxm) |
1. Algar da Lenha | 5 | 24 x 7 |
2. Mina do Grou | 20 | 34 x 3 |
3. Algar dos Mosquitos | 1 | 3,5 x 1,5 |
4. Algar da Cabrinha | 2 | 2 x 1 |
5. Algar do Guano | 18 | 90 x 56 |
6. Cova da Adiça | 19 | 41 x 31 |
7. Algar dos Javardos | 25 | 10 x 5,5 |
8. Algar da Chuva | 61 | 21 x 12 |
9. Algar da Ferradura | 29 | 10 x 3 |
10. Algar dos Carvoeiros | 34 | 8,5 x 3 |
11. Algar da Merlinha | 3 | 3 x 1 |
12. Algar das Abelhas | 12 | 2,5 x 1 |
MORFOLOGIA CÁRSICA
Comparada com outras regiões do País caracterizadas pela abundância de rochas carbonatadas (Maciço Calcário Estremenho e Barrocal Algarvio, por exemplo), a área estudada não constitui um sistema cársico avançado em termos de morfologia superficial.
Das formas características do modelado cársico superficial, ocorrem:
Ao nível subterrâneo, existem condutas que atingem razoável profundidade, geralmente associadas a fracturas de origem tectónica (de vários períodos geológicos). Portanto, apesar da insipiência do modelado cársico superficial, ocorre por sistema a drenagem da água em profundidade, à semelhança do que acontece em qualquer outro maciço carbonatado.
No entanto, devido às características do substrato, a carsificação subterrânea apresenta peculiaridades quando comparada com outras regiões. Desde logo, o desenvolvimento de galerias é muito fortemente condicionado pelas falhas tectónicas, dada a falta de outras estruturas que possibilitassem esse desenvolvimento (a estratificação e o diaclasamento antigos foram mascarados pelo metamorfismo). Não ocorrem redes de drenagem horizontais próximas do nível freático que recolham as águas infiltradas e as conduzam para nascentes cársicas.
Todas as cavidades naturais detectadas estão instaladas em zonas de falhamento. A água infiltra-se rapidamente em profundidade, originando e beneficiando da existência de grutas, mas é recolhida em fracturas antigas que se prolongam para além das rochas carbonatadas, conduzindo a água para nascentes em terrenos marginais.
No que toca à morfologia subterrânea, ocorrem nas grutas da região características curiosas e invulgares, devido ao facto de o maciço ser muito antigo e ter sofrido fases alternadas de orogenia, tectonização e carsificação. Citem-se entre outras as seguintes:
Finalmente, há que referir que a penetração nas grutas permitiu a visualização de características geológicas, em particular a existência de falhas, que não são aparentes à superfície e portanto não se encontravam até à data cartografadas.
ECOLOGIA CAVERNÍCOLA
As espécies vivas existentes nas cavernas constituem comunidades complexas, apesar das escassas fontes de energia existentes, já que a luz solar aí não chega. A cadeia trófica baseia-se essencialmente em processos de decomposição de matéria orgânica com origem no exterior (guano de morcego, matéria em suspensão arrastada pela água de infiltração, detritos naturais ou artificiais caídos pelas aberturas das grutas), e em processos químico-sintéticos.
Das doze cavidades identificadas, foram seleccionadas cinco que se entendeu merecerem um estudo climático e bioespeleológico: Algar da Lenha, Algar da Chuva, Algar da Ferradura, Algar do Guano e Cova da Adiça. Os estudos biológicos limitaram-se à fauna terrestre observável macroscopicamente.
No Quadro 2 listam-se as espécies animais observadas nas cinco cavidades.
Quadro 2 — Espécies animais identificadas nas grutas da área
GRUPO TAXONOMICO | ESPÉCIE | ALGAR LENHA | ALGAR CHUVA | A. FERRADURA | ALGAR GUANO | COVA ADIÇA |
Carnívoros | Gineta (Genetta genetta ) | - | - | - | sim | sim |
Quirópteros |
Morcego grande de ferradura |
- | - | sim | sim | sim |
Morcego pequeno de ferradura |
sim | - | - | sim | sim | |
Morcego rateiro grande |
sim | - | - | - | sim | |
Morcego de Scherbers |
- | - | sim | sim | - | |
Anfíbios |
Salamandra dos poços |
- | - | - | sim | sim |
Sapo corredor (Bufo calamita ) | - | - | sim | - | - | |
Sapinho de verrugas verdes |
- | - | - | sim | sim | |
Gastrópodes | Oxychilus lucidus | - | - | - | sim | sim |
Melanoides sp. | - | - | - | sim | sim | |
Crustáceos | Oniscus asellus | - | sim | sim | sim | sim |
Armadillidium | sim | - | - | - | - | |
Miriápodes | Lithobius forficatus | sim | - | - | - | sim |
Scolopendra cingulata | - | sim | - | - | - | |
Aracnídeos | Meta bourneti | - | sim | sim | - | - |
Meta sp. | sim | - | - | sim | sim | |
Opiliões | Falangio opilio | - | sim | - | - | - |
Dípteros | Culex pipiens | sim | sim | - | sim | sim |
Drosophil sp. | - | - | - | sim | sim | |
Tipula sp. | - | sim | - | - | - | |
Mycomya sp. | sim | sim | - | - | - | |
Himenópteros | Ambliteles sp. | - | sim | - | - | - |
Coleópteros | Carabus sp. | sim | - | sim | sim | sim |
Cychrus sp. | - | - | - | sim | - | |
Blaps gigas | - | - | - | sim | - | |
Trox sp. | - | - | - | sim | sim | |
Bryocharis sp. | sim | - | - | sim | - | |
Gabrius sp. | - | sim | - | - | - | |
Philonthus sp. | - | sim | - | - | - | |
Thanatophilus sp. | - | sim | - | - | - | |
Oxytelus tetracarinatus | sim | - | - | - | - | |
Cylindronotus sp. | sim | - | - | - | - | |
Pterostichus sp | - | - | - | - | sim | |
Psocópteros | Prococerastis sp. | - | - | - | - | sim |
Lepidópteros | Triphosa dubitata | - | - | - | sim | - |
Tinea sp. | - | - | - | - | sim | |
Ácaros | Dermacentor sp. | sim | - | - | - | - |
7. Disfunções ambientais
DESTRUIÇÃO DO COBERTO VEGETAL NATURAL
Na área em estudo, a floresta mediterrânica original foi quase completamente erradicada, subsistindo apenas pequenos núcleos em zonas acidentadas a meia encosta das serras. Nas planícies, a floresta foi substituída completamente pelo montado, olival ou searas. Nos topos das serras subsiste o matagal mediterrânico rupícola, dominado por formações arbustivas.
Ora, verifica-se que estes resquícios de matos e mata são críticos para a sobrevivência de muitas das espécies animais e vegetais que conferem a esta região uma invejável riqueza ecológica, e também um valioso potencial económico. O mosaico semi-natural criado pelo Homem, com uma grande diversidade de habitats e explorado com pouca intensidade, possiblitou mesmo o aparecimento de espécies estepárias como o sisão, quase extintas nos seus habitats de origem.
A conservação dos diferentes habitats existentes é um imperativo para a manutenção da diversidade ecológica da área, também pelo seu potencial económico (nomeadamente para a caça, a observação da vida selvagem e a produção de essências aromáticas). Os matos e sobretudo os pequenos núcleos de mata requerem um cuidado especial, pois a sua recuperação é muito lenta ou mesmo impossível. Igualmente a vegetação ribeirinha deve ser protegida, quer para garantir a estabilidade das margens e leito, quer pela sua importância como habitat.
EXTRACÇÃO DE INERTES
Na área estudada, há duas actividades no sector da extracção de inertes que, por motivos diferentes, provocam consideráveis danos ambientais.
Em primeiro lugar, a extracção de areias no Rio Chança. Não existe qualquer método de extracção lógico, sendo a areia simplesmente cavada das margens do rio, em grandes buracos irregulares. Daqui resultam impactes ambientais significativos: destruição da vegetação ripícola, ecologicamente valiosa enquanto habitat diferenciado; poluição das águas com a terra e lodo levantados, com a consequente afectação da fauna e flora ribeirinha, e das potencialidades de pesca; desnudação das margens, facilitando a sua erosão e consequentemente o assoreamento do rio a jusante; perda de valor paisagístico do local.
Nada justifica semelhante método de extracção. As quantidades extraídas são claramente excessivas para o que é suportável pelas características do rio, apesar de pequenas em termos absolutos. O rio pode e deve ser valorizado de outro modo, pois, dada a escassez de planos de água na região, é procurado como local de lazer e recreio. A instalação de pequenos equipamentos de apoio poderia melhorar significativamente as condições de uso deste espaço, o que seria muito mais satisfatório para as populações do que as actuais crateras à beira do rio.
Em segundo lugar, refiram-se as pedreiras a norte de Vila Verde de Ficalho. Se, por um lado, a pedra é um recurso natural valioso, cuja exploração deve ser consentida dentro de limites razoáveis, por outro lado, o actual método de exploração está ao nível do pior que se pratica em Portugal: a exploração tem lugar em frentes de corte excessivamente altas, que deixam barrancos atrás de barrancos; o material rejeitado é empilhado em montes que cobrem a vegetação e as linhas de água; a vegetação e o solo são sumariamente destruídos; não há recuperação paisagística; não há precauções com vista à limitação da poluição atmosférica.
É perfeitamente possível explorar as pedreiras com um programa de recuperação paisagística.
A exploração pode ser feita em socalcos, e as zonas exploradas preenchidas com o material rejeitado, recoberto com solo recuperado e vegetação natural.
ABATE DE AZINHO E PRODUÇÃO DE CARVÃO
Em vários locais, o montado de azinho tem vindo a ser abatido ilegalmente para alimentar fornos de carvão vegetal, também eles funcionando ilegalmente. Esta é uma situação grave.
Em primeiro lugar, a destruição do montado, especialmente do montado denso, é ecologicamente perniciosa, pois o montado tem uma função de estabilização climática, mantém uma comunidade ecológica rica, e pode demorar uma centena de anos a recuperar.
Em segundo lugar, os fornos de carvão funcionam sem as adequadas condições de controlo de poluição e segurança, produzindo emissões atmosféricas tóxicas e incomodativas, como monóxido de carbono e metano.
Em terceiro lugar, o desaparecimento do montado dá lugar a ocupações do território como a monocultura de eucalipto, completamente desadequada nesta região. Em quarto lugar, o uso de carvão vegetal de azinho no balanço energético nacional é irrisório, pelo que a sua eliminação não causa qualquer problema.
Por estes motivos, o abate do montado de azinho e sobro e uma das suas principais utilizações, o carvão vegetal, devem ser severamente controlados e sancionados.
EROSÃO NOS TERRENOS AGRÍCOLAS
Um pouco por toda a área estudada foi possível observar ao longo deste trabalho fenómenos erosivos, associados em grande medida a práticas agrícolas incorrectas.
A lavra mecânica, gradagem e queimadas, eventualmente justificáveis na planície, provocam nas zonas declivosas uma mobilização excessiva do solo, já de si pouco espesso. As consequências são especialmente perniciosas quando a lavra é praticada de alto a baixo (em vez de ao longo das curvas de nível). Com as chuvadas torrenciais, o solo é erodido em larga escala, quer por erosão laminar (decapagem de estratos inteiros numa vasta área) quer por erosão ravinar (criação de ravinas profundas por onde se dá o escoamento da água). As consequências são devastadoras para a fertilidade e estrutura do solo.
A erosão tem ainda outros efeitos gravosos: o material mobilizado vai provocar problemas de assoreamento nas linhas de água para onde é descarregado; a ausência de cobertura vegetal do solo diminui a retenção de água da chuva, a infiltração da água no solo, e a recarga dos aquíferos; a ausência de cobertura vegetal permite uma maior velocidade e quantidade do escoamento das águas pluviais, aumentando a amplitude das cheias.
Em zonas muito declivosas, a vegetação natural não deve ser eliminada. É preferível ter matos que protegem o solo e fornecem abrigo à fauna, do que ter campos inférteis, linhas de água assoreadas e cheias frequentes. Em zonas de declive intermédio, é possível uma utilização agrícola se o terreno for armado em socalcos. Alternativas à prática agrícola marginal são o uso florestal (não com espécies de crescimento rápido) e cultivo de plantas aromáticas e medicinais.
CAÇA
A caça é uma actividade secular nesta região, como aliás em grande parte do País. No entanto, a sua exploração não tem sido a mais racional. A sobre-caça redundou no declínio das principais espécies cinegéticas, que só lentamente recuperam. Recentemente, a criação de zonas de caça turística e associativa veio resolver parcialmente o problema da gestão das espécies cinegéticas. No entanto, criou fortes tensões sociais perante os caçadores sem terra.
Por outro lado, as zonas de caça turística e associativa vieram exacerbar um problema antigo: o massacre dos predadores considerados "nocivos". É antiga a convicção popular de que os predadores são competidores do Homem na sua actividade cinegética. Qualquer estudioso de ecologia sabe que isto é falso: um ecossistema rico é aquele em que abundam os predadores que, aliás, tendem a eliminar os animais velhos e doentes, ao contrário do predador humano, que tem preferência por troféus gordos e de saúde.
A eliminação de predadores nas zonas de caça, podendo no imediato representar um lucro ou um número de peças cinegéticas um pouco maior, conduz inevitavelmente a médio prazo a um empobrecimento e menor resistência do ecossistema. Note-se que estes predadores, popularmente ainda vistos como "nocivos", são na sua maioria espécies raras e legalmente protegidas, por legislação nacional e comunitária. Além disso, têm uma utilidade objectiva: limitam a proliferação de espécies como a ratazana que, estas sim, são verdadeiras pragas.
Infelizmente, a ignorância mantém-se entre as populações, caçadores e proprietários. Os antigos "bicheiros", ou caçadores de predadores, mantêm-se em actividade, agora contratados pelas zonas de caça, mais ou menos clandestinamente; frequentemente contra o parecer das empresas especializadas que prestam apoio técnico às coutadas. Quanto aos caçadores, muitos deles não têm formação adequada e atiram a tudo o que se mexe.
Para pôr cobro a esta situação, haveria que actuar a diferentes níveis: realizar uma campanha de educação ambiental maciça junto dos proprietários, caçadores e moradores locais; promover uma fiscalização séria e sistemática das práticas de gestão das zonas de caça, em especial no que toca ao controlo de predadores; fiscalizar devidamente os caçadores; promover outras formas de aproveitamento da fauna, por exemplo safaris fotográficos.
8. Conclusões
A conclusão fundamental deste trabalho é que a região das Serras da Adiça e Ficalho contém um património natural de grande valor. Alguns elementos são particularmente sensíveis e há que tomar medidas de protecção para os salvaguardar. Por outro lado, estes valores naturais podem ser explorados e rentabilizados sem se degradarem.
A área estudada apresenta uma paisagem humanizada de grande beleza, em que a intervenção humana secular e os resquícios de coberto vegetal natural se combinam harmoniosamente. Do ponto de vista faunístico e florístico, é uma região de grande valor e apreciável diversidade ecológica. Residem aqui múltiplas espécies raras, ameaçadas e com estatuto de protecção, que importa conservar.
Ao nível do coberto vegetal e uso do solo, há três habitats que ocupam uma pequena área mas requerem uma protecção especial e efectiva: os pequenos núcleos de mata, os matos das serras e a vegetação ripícola. Habitats humanizados, como o montado e as searas, devem ser geridos tendo em conta a diversidade ecológica e paisagística que proporcionam.
Para a fauna, o factor mais importante de conservação é a manutenção do habitat, em especial a preservação do coberto vegetal. Adicionalmente, para as espécies raras, em especial os predadores, há que tomar medidas activas de protecção contra a caça desregrada.
As características geológicas da região são invulgares no quadro português. Ocorrem diversas grutas com significativo interesse espeleológico, quer do ponto de vista da morfologia cársica, quer ao nível biológico. É possível que estejam por descobrir ainda outras com maior interesse.
Foram identificadas disfunções ambientais, que põem em risco o património natural existente: ameaças ao coberto vegetal natural, extracção de inertes de modo indevido, abate de montado de azinho para produção de carvão, erosão devido a práticas agrícolas inadequadas, e métodos de gestão cinegética ilegais e perniciosos.
A resolução destes problemas, para a qual foram apontadas algumas pistas, permitirá um desenvolvimento mais equilibrado da região.
Agradecimentos
Esta comunicação baseia-se num trabalho extenso e multidisciplinar, para o qual colaboraram muitas pessoas e entidades, cujo mérito importa reconhecer.
Em primeiro lugar, queremos referir os restantes membros da equipa de projecto: Armelim Pires, Bruno Gomes Santos, Carlos Costa, Eunice Soares, Francisco Ourique, Francisco Santos, Gonçalo Almeida, Henrique Carvalho, Joaquim Braga, Jorge Cancela, Jorge Cabeço Gonçalves, Luís Miguel Pereira, Manuel Jorge Costa, Paula Trindade, Paulo Xavier Catry, Paulo Ferreira, Pedro Canavilhas de Melo, Rui Berkemeier e Tiago Joanaz de Melo.
Em segundo lugar, desejamos agradecer às pessoas e entidades que mais apoiaram a execução do trabalho: Direcção Regional de Ambiente e Recursos Naturais do Alentejo e sua directora Drª Lina Jan, Câmara Municipal de Serpa e seu Presidente, Associação de Defesa do Património de Vila Verde de Ficalho, proprietários e empregados do Restaurante da Boa Vista em Vila Verde de Ficalho, Drª Luísa Rodrigues e Prof. Jorge Palmeirim, Sr. Vítor Castelhano, Sr. João Monge, Biblioteca-Museu de Vila Verde de Ficalho e seus responsáveis, Dr. Francisco Valente Machado, Dr. Bartolomeu Rodrigues, Sr. Armando Sebastião, funcionários da Junta de Freguesia de Sobral da Adiça, Dr. João Dinis, Sr. Manuel Carlota, ao falecido Sr. Leitão e a Margarida Cabral Joanaz de Melo.
III Congresso Nacional de Espeleologia
Angra do Heroísmo, Açores, 1-4 Outubro 1992
Autores: Raul Pires Pedro e João Joanaz de Melo
Centro de Estudos e Actividades Especiais da Liga para a Protecção da Natureza
Morada: Estrada Calhariz de Benfica, 187, 1500 LISBOA
Referências
CEAE-LPN (1991). Levantamento do Património Natural das Serras da Adiça e Ficalho — relatório final. Estudo realizado para a CCR Alentejo. 4 volumes, cerca de 300 páginas. (A bibliografia completa consta no relatório supracitado)