Auto Estrada - A1 (Torres Novas-Fátima)

A AUTO-ESTRADA TORRES NOVAS - FÁTIMA E O PARQUE NATURAL DAS SERRAS DE AIRE E CANDEEIROS

 

 

RESUMO

Nesta comunicação dá-se conta das preocupações e do trabalho desenvolvido pelo CEAE-LPN (Centro de Estudos e Actividades Especiais da Liga para a Protecção da Natureza) em relação ao sub-lanço Torres Novas - Fátima da Auto-estrada do Norte e sua interferência com o Parque Natural das Serras de Aire e Candeeiros (PNSAC). Faz-se o historial da situação, uma breve descrição do projecto e seu enquadramento, uma análise sumária dos aspectos espeleológicos e dos impactes ambientais estudados pelo CEAE-LPN, e enunciam-se as posições do CEAE-LPN sobre a matéria.

 

HISTORIAL

Encontram-se em fase adiantada os trabalhos preparatórios com vista à construção do sub-lanço Torres Novas - Fátima da Auto-estrada do Norte, cujo traçado previsto atravessa o PNSAC.

A opção por tal traçado foi tomada pela Junta Autónoma de Estradas (JAE) em 1977, numa época em que o Ambiente estava longe de assumir a importância que hoje se lhe reconhece, e anteriormente à criação do Parque Natural (que se concretizou apenas em 1979). Os estudos então efectuados davam reduzido ênfase às questões ambientais, que tiveram um peso insignificante na escolha do traçado. Para além disso, o Parque Natural veio introduzir um elemento novo, que obviamente não poderia ter sido previamente considerado.

Após a criação do PNSAC, seria lógico que tais estudos fossem revistos e a decisão repensada, com intervenção activa das diferentes entidades interessadas.

No entanto, isto não se verificou. Durante anos, houve apenas uma troca de ofícios e pareceres desgarrados entre o Serviço Nacional de Parques, Reservas e Conservação da Natureza (SNPRCN), a JAE e outros departamentos do Estado. O SNPRCN pronunciou-se repetidamente contra o projecto, embora sem elaborar nenhum estudo integrado. A JAE ignorou repetidamente tais pareceres e deu indicações à Brisa para avançar com o projecto tal como inicialmente previsto. Apenas em 1986 o Parque Natural foi instalado de facto, e só nessa altura se começou a repensar globalmente a questão. Em Setembro de 1987, foi entregue ao Parque Natural um relatório de avaliação preliminar de impactes ambientais, executado pelo CEAE-LPN. Tal relatório, embora sem aprofundar todas as questões, equacionava os principais problemas levantados e adiantava algumas soluções.

Por seu lado, os serviços do PNSAC têm vindo a estudar propostas alternativas de traçado, fora do Parque Natural.

Entretanto, um conjunto de associações pronunciou-se publicamente contra a forma como o processo tem sido conduzido, e a favor da realização pela Brisa de um Estudo de Impacte Ambiental aprofundado. Entre os subscritores de tal posição contavam-se a Liga para a Protecção da Natureza, o GEOTA-Grupo de Estudos de Ordenamento do Território e Ambiente, a Quercus-Associação Nacional de Conservação da Natureza, a Federação Portuguesa de Espeleologia, a Associação para a Defesa e Valorização do Património Natural e Cultural da Região de Torres Novas e a Sociedade de Espeleologia e Arqueologia de Torres Novas. Idêntica posição veio mais tarde a ser tomada por outras entidades, incluindo várias associações ambientalistas e grupos de espeleologia.

Por outro lado, a Brisa tem tentado acelerar o processo por forma a não ser obrigada a executar um estudo de impacte ambiental, nos moldes da Directiva 85/337/CEE do Conselho das Comunidades Europeias, a qual entra em vigor a 3 de Julho de 1988.

 

NOTAS SOBRE O PNSAC

O Parque Natural das Serras de Aire e Candeeiros estende-se pelos distritos de Santarém e Leiria, concelhos de Rio Maior, Alcanena, Torres Novas, Santarém, Vila Nova de Ourém, Porto de Mós e Alcobaça. Tem uma área de 350 km2 e ocupa cerca de 2/3 do Maciço Calcário Estremenho.

Recorde-se que esta é uma região com características muito peculiares, completamente diferente das grandes regiões envolventes: Litoral Oeste, Ribatejo e Beira Baixa. De facto, o Maciço tem uma unidade intrínseca que não é desmentida pelas divisões administrativas. É o maior maciço calcário em Portugal, e aquele onde é mais desenvolvido o modelado cársico típico destas regiões. Foi esta, aliás, uma das razões que levaram à institucionalização do PNSAC.

O Parque Natural possui motivos de grande interesse, como formações geológicas de grande valor, magníficas paisagens, uma flora e fauna características, riqueza em vestígios pré-históricos, grande número de grutas, algumas de grande beleza, bem como uma cultura popular que constitui um importante património regional e nacional. Todo este conjunto traduz notáveis potencialidades económicas, científicas e recreativas.

A região onde se localizará a auto-estrada é de natureza rural, com povoamento pouco denso e concentrado. Em relação à actividade económica, domina largamente a agricultura, sendo ainda muito importante a indústria de curtumes e a pecuária.

 

DESCRIÇÃO DO TRAÇADO

Os nós terminais deste sub-lanço da Auto-estrada situam-se respectivamente: o nó de Torres Novas nas proximidades da povoação de Gouxaria, o nó de Fátima a cerca de 1km a oeste do Santuário.

A partir da Gouxaria, o traçado adoptado pela JAE inflecte para a esquerda, atravessa a EN 243 a oeste de Videla, com a orientação sueste-noroeste; corta o Arrife quase perpendicularmente; passa pelo bordo sudoeste da Serra de Aire, a leste de Minde, onde toma a direcção norte; em seguida, atravessa a EN 360 a leste do Covão do Coelho e segue, até ao nó de Fátima, sensivelmente paralela a esta estrada. Este traçado corta o PNSAC em duas unidades, isolando a Serra de Aire do restante.

O trajecto em estudo pelo PNSAC contornaria o Arrife e a Serra de Aire pelo lado leste e norte, evitando o Parque Natural.

01Troço da Auto-Estrada entre Minde e a Serra de Aire.

 

ASPECTOS ESPELEOLÓGICOS

A região estudada pelo CEAE-LPN, no âmbito dos trabalhos preparatórios do relatório de avaliação preliminar de impactes ambientais, abrangeu cerca de 210 km2, incluindo a zona envolvente dos diferentes traçados possíveis para a auto-estrada.

Em termos de coordenadas cartográficas rectangulares UTM, a zona referida situa-se sensivelmente entre os km 527 a 537 E e 4367 a 4388 N. Desta área, apenas cerca de 110 km2 correspondem ao Maciço Calcário Jurássico, onde se dão os principais fenómenos cársicos, pelo que só esta parte foi efectivamente estudada a fundo em termos espeleológicos.

Foram identificadas ao todo 114 cavidades. Destas, foi possível localizar 94, enquanto das outras 20 não foi possível obter em tempo útil a localização exacta. De entre as grutas localizadas, 58 foram exploradas ou revisitadas pelo CEAE-LPN; as restantes 36 foram tratadas apenas através de informações provenientes de outras fontes (designadamente o PNSAC e a Sociedade Portuguesa de Espeleologia). Para além destes números, há cerca de uma trintena de cavidades cuja existência foi referida pelas populações locais, mas que não foram ainda estudadas. Contando com estas, o número total de grutas conhecidas na zona elevar-se-ia a perto de centena e meia.

As equipas do CEAE-LPN prospectaram sistematicamente várias áreas, entre as quais: todo o percurso adoptado pela JAE, numa faixa de 200m de largura centrada no eixo previsto do traçado; a encosta norte da Serra de Aire; e a zona de Boleiros-Maxieira.

02Algar da Lomba

Na zona entre o Vale da Serra e Moitas Venda passa uma galeria proveniente do Polje de Mira-Minde que conduz ao rio subterrâneo do Almonda. Não é conhecida a sua localização e profundidade exactas, mas é provável que seja na zona das falhas que morrem no Arrife. Não é de pôr de parte a hipótese de, com as escavações para galgar o Arrife, essa galeria ser atingida. Torna-se importante por isso localizá-la com exactidão.

Mais adiante, o traçado passa exactamente sobre a entrada do Algar do Penedo Gordo. Esta cavidade, embora relativamente pequena, desenvolve-se sob a faixa da auto-estrada.

A zona do Covão do Coelho apresenta uma perturbação bastante mais importante, visto que o desaterro nesta zona vai aprofundar o nível topográfico até muito próximo das grandes galerias do Algar da Lomba. É muito possível que sejam atingidas várias galerias. Este facto é tanto mais grave quando esta gruta constitui um dos principais escoamentos da escorrências infiltradas na encosta sudoeste da Serra de Aire, de Vale Alto à depressão do Covão do Coelho. Para além disso, o Algar da Lomba é uma das mais importantes grutas portuguesas a nível espeleológico, quer no campo científico (principalmente no domínio da geoespeleologia) quer no desportivo.

Algar da Lomba Algar da Lomba

Mais adiante, próximo de Maxieira e Boleiros, é atravessada outra zona com intensa carsificação sub-superficial, com alta densidade de grutas.

Em resumo, e em relação ao traçado da JAE, há pelo menos 1 cavidade registada dentro do espaço da via, mais 6 a menos de 100m do eixo da auto-estrada, e ainda várias outras com a boca obstruída. Há ao todo 34 cavidades registadas a menos de 1km do traçado. De uma forma geral, têm desenvolvimento profundo, indicando a hipótese da existência de mais chaminés subterrâneas a pouca distância da superfície e um sistema complexo de drenagem em profundidade.

Parece provável que novas galerias sejam postas a céu aberto pelos trabalhos de escavação, sendo imprevisível a importância de tais cavidades.

 

IMPACTE AMBIENTAL

Se este traçado se concretizar, irá interferir seriamente com o PNSAC.

Discriminam-se em seguida os principais impactes decorrentes da implantação da auto-estrada e respectivas medidas mitigadoras: Geologia. A nível geológico, a situação é extremamente problemática, dadas as inúmeras grutas identificadas e outros indicadores de inadequada estabilidade do substrato rochoso. Este facto acarretará dificuldades acrescidas de construção da auto-estrada. Num traçado fora do PNSAC, tais problemas seriam quase eliminados.

Poluição do ar e ruído. Apenas se podem apontar tendências qualitativas para a poluição do ar, devido à escassez de dados climatológicos. A situação mais preocupante parece ser a zona de Minde devido à probabilidade de concentração de poluentes na depressão fechada do polje de Mira-Minde. Outras zonas potencialmente problemáticas são as subidas do Arrife e dos flancos da Serra de Aire. As medidas possíveis de controle de poluição atmosférica e sonora incluem limites de velocidade para o tráfego e uso de equipamentos redutores das emissões. Num traçado fora do PNSAC, estes problemas seriam bastante menos significativos.

Poluição da água. Devido ao terreno calcário, a escorrência superficial é reduzida e a infiltração muito rápida. Com a presença da auto-estrada, existe um risco real de contaminação dos aquíferos pelas águas de escorrência do pavimento, as quais têm uma carga poluente considerável. É possível no entanto efectuar o seu tratamento.

Algar da Lomba

Ocupação do solo. A ocupação de terrenos de aptidão agrícola não é muito extensa, embora o seja a ocupação de terrenos florestais. Com um traçado fora do PNSAC, a ocupação de solos agrícolas seria maior.

Biota e ecossistemas. Ao atravessar o PNSAC, a auto-estrada criará um efeito de fronteira, o qual se traduz directamente por uma ruptura das populações animais, entre a Serra de Aire e o resto do Parque Natural. Em particular, poderá ser afectado o lince, recentemente descoberto nesta área. Naturalmente, estes problemas não se põem se a auto-estrada não atravessar o PNSAC. As medidas de mitigação dos impactes têm a ver com o planeamento das obras, uso de determinados processos construtivos e monitorização cuidada.

Paisagem. A auto-estrada causará uma ferida na paisagem, que é bastante difícil de ocultar. Cortinas de árvores poderão ser uma medida mitigadora deste efeito. Fora do PNSAC, o problema é muito menos significativo, dado que a auto-estrada se situaria em terrenos não proeminentes. Economia regional e nacional. Em termos regionais e nacionais, a auto-estrada vai trazer benefícios muito importantes, dada a sua importância crucial como eixo de comunicação e factor de desenvolvimento.

Sócio-economia local. A expropriação de terrenos, os trabalhos de construção e o próprio funcionamento da auto-estrada serão negativos para as populações locais. Por outro lado, abrem-se perspectivas em termos de emprego, acessibilidade, turismo e outras actividades económicas. No entanto, o aproveitamento de tais possibilidades está longe de ser simples, sobretudo se se pretender conservar e aproveitar o património cultural local.

Custo da auto-estrada. Com um traçado fora do PNSAC, o custo seria aparentemente maior devido ao maior comprimento da via. Na realidade, a diferença deverá ser pouco significativa, pois na alternativa adoptada pela JAE, as dificuldades do terreno implicarão custos extremamente elevados, que não foram contabilizados de início. Por outro lado, o custo das medidas mitigadoras dos impactes é diminuto, se tais medidas forem equacionadas de início - sendo no entanto mais dispendiosas se a auto-estrada atravessar o Parque Natural.

 

CONCLUSÕES

Desta situação, podemos extrair as seguintes conclusões:
1. Parece francamente favorável a escolha de um traçado que não atravesse o PNSAC, apesar de tal solução também não estar isenta de problemas.
2. Deverão ser adoptadas diversas medidas mitigadoras dos impactes ambientais, no respeitante à construção e operação da auto-estrada.
3. Diversas questões necessitam de estudo mais profundo, nomeadamente a poluição atmosférica, poluição da água, arranjos paisagísticos, sensibilidade dos ecossistemas, técnicas construtivas e levantamentos geológicos.
4. Deverá ser estudado e integrado no projecto da auto-estrada um programa de monitorização da qualidade do ambiente.
5. Deverão ser implementadas formas mais estreitas de troca de informações e cooperação entre as entidades envolvidas - PNSAC, Brisa, JAE, associações ambientalistas e espeleológicas interessadas, etc.
6. As questões acima referidas, entre outras, deveriam ser objecto de um Estudo de Impacte Ambiental. Tal estudo deveria ser apreciado e sujeito a uma audiência pública, no âmbito de um processo de Avaliação do Impacte Ambiental (AIA), nos termos da Lei de Bases do Ambiente, da Directiva 85/337/CEE e de regulamentação já elaborada pelos serviços competentes. Recorde-se que o Governo tem poderes para, a qualquer momento, ordenar a realização de um tal processo de AIA.

 

EQUIPA DE PROJECTO

João Joanaz de Melo – Coordenador Geral
Raul Pedro – Coordenador dos Estudos Geológicos e Espeleológicos
Paula Antão da Silva, Isabel Cristina Silva, Maria dos Santos Correia, Maria Helena Alves, Maria Castilho

 

COLABORADORES PERMANENTES

Francisco Ourique, Manuel Jorge Costa, Rui Taborda, Francisco Falcão Fatela, Cristina Garret, Pedro Canavilhas de Melo, Paula Trindade

 

OUTROS COLABORADORES

Tiago Joanaz de Melo, Nuno Vieira, Nuno Miranda, Fernando Santos, João Paulo Pedrosa, Joaquim Braga, Francisco Santos

 

I CONGRESSO NACIONAL DE ESPELEOLOGIA
Porto de Mós, 1 a 3 de Abril de 1988

Federação Portuguesa de Espeleologia
Parque Natural das Serras de Aire e Candeeiros
Câmara Municipal de Porto de Mós

 

REFERÊNCIAS

• CEAE-LPN, "Avaliação Preliminar de Impactes Ambientais do Sub-lanço Torres Novas-Fátima da Auto-Estrada do Norte - Relatório final", Setembro 1987 (trabalho elaborado pelo CEAE-LPN para o SNPRCN)
• MELO, J. JOANAZ; GASPAR, P. PORTUGAL, Avaliação do Impacte Ambiental (separata especial de O Verde), GEOTA, Abril 1988 

 

SUB-LANÇO TORRES NOVAS - FÁTIMA DA AUTO-ESTRADA DO NORTE
Traçado proposto pela BRISA/JAE
Possível traçado alternativo Limite do Parque Natural das Serras de Aire e Candeeiros
Escala: 1/100000

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